quinta-feira, 16 de agosto de 2012









O AMOR PERDOA 
OU 
EU TE DISSE PARA NÃO ENTRAR NO QUARTO DE VIDROS



(Peça curta em ato único, escrita por Bruno Campelo e Thaiz Cantasini – agosto/2012)











PERSONAGENS

CARLOS – Homem de 35 anos. Bonito e sereno, embora já tenha sofrido muito na vida.
STELA – Mulher de 30 anos. Sempre elegante e bonita, traz consigo manias discretas, características de certo grau de perturbação psicológica. A perturbação é crescente no decorrer da trama.
BENEDITA – Senhora muito branca, cabelos longos e ruivos. Olheiras no rosto e ar de sofrimento.












Casarão antigo. Porta central aberta. Na sacada, uma mulher degusta uma dose de uísque. Ao portão surge a imagem de Carlos, que para e chama por Stela.

CARLOS – Stela? É você? Sou eu, Carlos.

STELA – (surpresa) Não é possível! (sorriso nervoso) Carlos! Você me disse que voltaria... Quantos anos se passaram... Essa lembrança... (ansiosa, olhando para todos os lados. Fala baixo.) Vem, Carlos. Entre rápido!

CARLOS – Você está tão diferente! Tão linda! Uma mulher de verdade! (pausa) Voltei para cumprir a promessa de nosso casamento.

STELA – Mas as coisas estão diferentes! Você prometeu voltar, eu te esperei tanto tempo...  Mas...

CARLOS – Mas...? Mas o que, Stelinha? Guardei meu amor e minha promessa e aqui estou. Preciso te contar tudo o que me aconteceu

STELA – Ainda sinto o cheiro de cigarro pela casa.

CARLOS – Parei de fumar! E de beber também!

STELA – Tenho bebido tanto, mas também parei de fumar.

CARLOS – Aquele tempo. Eram coisas da juventude.

STELA – Ainda tenho os vestidos que você gostava.

CARLOS – Mesmo?

STELA – Posso colocá-los?

CARLOS – Por favor! Deixe-me vê-la!

(baú antigo, mofo, vestido rendado um pouco menor que a dona)
 
STELA – Lembra-se desse?

CARLOS – Claro que sim. Nosso primeiro encontro na sorveteria.

STELA – Eu tão boba... E agora, quanta coisa pra dizer! (pausa) Eu me casei, Carlos. Casei porque eu achei que você estivesse morto, perdido... Eu errei!

CARLOS – (surpreso) Você... se casou? Não é possível! Por que fez isso, Stela!

STELA – Eu me casei porque quando você foi embora, deixou uma criança em meu ventre, amor.

CARLOS – Uma criança? Um filho meu?

STELA – Sim, temos uma criança! Depois que você foi embora, começaram os primeiros enjoos!

CARLOS – Meu filho? (Carlos fraqueja, quase desmaiado)

STELA – Amor... amor... (álcool na estante)... Cheire esse lenço... Respire!

CARLOS – (tosse) Stela! Stela, o que está acontecendo? É verdade o que você disse? Um filho meu?

STELA - Sei que exagerei na dose, que falei sem preparar você! (pausa) Temos uma criança, que amanhã completa seus 13 anos... Quase um homem. Ele tem seu nome!

CARLOS – Onde ele está?

STELA – Enganei Oswaldo! Ele resolveu cuidar de mim. Mas eu me deixei envolver... Estava sozinha...

CARLOS – Onde está meu filho? Ele sabe quem sou eu, Stela?

STELA – Ele está no quarto. Está muito doente.

CARLOS – O que ele tem?

STELA – Nosso filho nunca viu a luz do dia

CARLOS – O QUE?

STELA – Eu o mantive no quarto esse tempo todo porque me sinto culpada.

CARLOS – Culpada por quê? Não é possível!

STELA – Ele se parece com você.

CARLOS – Parece? (leve sorriso de canto de boca)

STELA – Eu olhava para ele e via você, Carlos.

CARLOS – Carlinhos! Um filho meu!

STELA – Ele não foi alfabetizado, nada. Eu o criei como um bebê, ele é meu bebê! Entro no quarto, dou as refeições...

CARLOS – Stela, me leve até esse menino!

STELA – ...e brincamos.

CARLOS – Você não poderia ter feito isso com ele!

STELA – Ele está muito doente, Carlos. Fiz porque eu quis parar o tempo. O dele, o meu, o seu...

CARLOS – Como manter uma criança treze anos presa em um quarto escuro?

STELA – Temos luz de velas.

CARLOS – Você está louca?

STELA – Não, amor... Fiz isso para congelar nosso tempo bom.

CARLOS – Stela, você enlouqueceu durante esse tempo. Isso não se faz com uma criança inocente!

STELA – Vou desencaixotar os vestidos.

CARLOS – NÃO!

STELA – Carlinhos é meu bebê.

CARLOS – Pare com essa doença. (exaltado) Leve-me até Carlinhos já!

STELA – Você não o verá com o coração desse jeito.

CARLOS – Meu coração já se transformou no mais lindo coração de um pai. Sou o pai, entendeu? Sou o pai!

STELA – Mas você está me culpando mais do que já me martirizei com seu sumiço por todos esses anos.

CARLOS – Você não me respondeu! Ele sabe quem sou eu, Stela?

STELA – Sim, ele sabe da verdade. E, por isso, vive encarcerado. Porque Oswaldo jamais saberá do meu passado.

CARLOS – (choro emocionado. Pausa) E onde está esse homem com quem se casou?

STELA – Ele está preso, por tentar matar Carlinhos em uma de suas bebedeiras. Mas sou vigiada por comparsas dele

CARLOS – O que? Monstro! Vamos embora já desse lugar, Stela! Vou cuidar de você e de Carlinhos! Vamos! Arrume suas coisas! Juntos, vamos mostrar Carlinhos ao mundo e vamos assumir nosso filho.

STELA – Olho para você e parece que acordei de um pesadelo.

CARLOS – Vou cuidar de você, meu amor! Carlinhos irá conosco. Cuidarei dele também. Darei meu amor de pai! Tenho muito que conversar com ele, contar toda a história de meu sumiço. E esperar que ele entenda e me aceite! (olha para Stela) Você não está bem psicologicamente!

STELA – Estou bem! Muito bem!

CARLOS – Não! Não está! Não poderia ter enclausurado nosso filho, privando-o de amizades, da luz do sol, do mundo lá fora!

(Stela dá as mãos para Carlos e o conduz a um corredor imenso... longo... antigo... cheiro de mofo, infiltrações. Ao fundo, uma porta grande, trancada... ela para em frente à porta e tira a chave de um de seus sapatos)

STELA – Este é Carlinhos. Nosso bebê! Ele irá aprender a falar e andar com o pai.

(Carlos olha com os olhos esbugalhados. Totalmente desacreditando no que está vendo)

STELA – Carlinhos, meu menino, este é seu pai. O que sempre falei.

(Carlos chora muito) (Cheiro forte. Escuro. Cadáver sobre cama)

STELA – Carlinhos, está com fome?

CARLOS – O que você fez, Stela? O que significa isso? Você é um monstro, Stela! Um monstro! Como foi capaz?

STELA – Este é nosso menino! Ele amanhã completa 13 anos. 13 anos que ele dorme o dia todo. Ele se parece com você. Olha o queixo... os olhos...

(Carlos olha assustado para os cantos do quarto. Velas iluminam estantes com bisturis)

CARLOS – Eu não posso acreditar! Você chegou num grau de loucura que não poderia estar solta nas ruas!

STELA – Hora da injeção, meu amor... Carlinhos, você precisa aprender a falar com seu pai.

CARLOS – Stela! Essa criança está morta!

STELA – Carlos, ensine nosso bebê a falar!

CARLOS – PARA COM ESSA LOUCURA! Chega! Chega!

STELA – (exaltada) Quem está morta sou eu, com a sua ausência. Com as surras que tomei de Oswaldo! (dócil) Só tenho Carlinhos! Somos só nós dois!

CARLOS – Como pude guardar esse amor pra você, Stela? Olha esse cadáver, Stela! Ele não se mexe, não respira, não pensa! Meu Deus! Meu filho!

(telefone toca. Tensão)

STELA – São eles. Os comparsas de Oswaldo.

CARLOS – Quem?

(entra Benedita)

STELA – Benedita?

BENEDITA – Senhora, são novamente aqueles homens ao telefone!

STELA – Eu te disse para não entrar no quarto de vidros! Sua idiota. Diga para eles que fui fazer compras para Carlinhos. Comprar mais remédios.

BENEDITA – Sim, senhora!

STELA – Benedita, volte aqui. Onde estão minhas capsulas? Sinto-me cansada!

BENEDITA – Estão aqui, senhora!

STELA – Porque você nunca me deixa ver que remédios são esses, Benedita? Sei que fazem bem, me acalmam...

BENEDITA – (Interrompendo e mudando de assunto) A respeito do telefonema, senhora, o homem disse que chegará ao entardecer!

STELA – Carlos, você precisa ir embora!

CARLOS – Ir embora? Não irei. Não saio daqui sem entender o que está acontecendo.

STELA – Carlos, você vai matar a minha família. Oswaldo matará nosso bebê!

CARLOS - Que família? Você não tem família, Stela! Esse bebê já está morto! Entenda! Nosso filho está morto!

STELA – Ele está com fome. Diga Carlinhos. Diga se sente fome, meu amorzinho.

CARLOS – PARA

STELA – Carlos! Não!

CARLOS – (Segurando Stela pelos braços) Para, pelo amor de Deus!

STELA – (choro desesperado) Eu vou pular essa janela. Com Carlinhos nos braços. Agora quem vai sumir sou eu, Carlos!

CARLOS – Faça o que quiser, Stela! Só não posso aceitar você que continue com essa loucura!

STELA - Que loucura? O que você veio fazer aqui, Carlos? Está negando seu filho? Está negando meu amor outra vez?

CARLOS – Não Stela! Apenas não encontrei a mesma pessoa que deixei aqui!

STELA – Carlinhos está vivo... Está vivo... (desistente)

CARLOS – Não está! Chega! Ele está morto! Morto por pura loucura sua! Por uma imaginação de que prendendo nosso filho dentro desse quarto você me teria mais perto!

STELA – (caindo em si) Meu menino está morto?

CARLOS – Está morto!

STELA – Você voltou para dizer que Carlinhos está morto...

(Carlos chora. Stela abraça o cadáver na cama, chora compulsivamente, abraça Carlos)

CARLOS – Stela, eu sequer sabia da existência de nosso filho! Numa mesma manhã eu descobri que tenho um filho, que ele está morto e que a mulher que sempre amei está completamente doente. Acalme-se, Stela! Acalme-se! Tudo ficará bem! Vamos! Você irá comigo! Nada vai te acontecer!

STELA – Por que você foi embora, Carlos? Me deixou sozinha, só com os vestidos e as lembranças.

CARLOS – Eu tive que fugir! Pra defender minha mãe! Ela estava ameaçada de morte! Não pude dizer nada a você. Apenas deixar aquele bilhete!

 (batidas na porta)

STELA – É Oswaldo! Ele saiu da prisão. Eu não acredito. Ele irá me matar, matar você.

CARLOS – Não, Stela! Não é ninguém! Isso tudo é sua imaginação!

STELA – Tenho medo, Carlos. Medo!

CARLOS – Oswaldo foi entregue à polícia federal e deportado de volta a Moçambique!

STELA – Como você sabe disso?

CARLOS – Fique tranquila que nada de ruim irá te acontecer! Estou com você, Stela!

STELA – Benedita me disse que Oswaldo está saindo da prisão. Benedita cuida de mim. Me dá os remédios, como Oswaldo dava.

(Entram quatro homens do hospital psiquiátrico. Prendem Stela em uma camisa de força, aplicando um calmante muito forte. Stela é retirada de cena, desacordada)

CARLOS – Benedita! Benedita! Agora está tudo bem, minha mãezinha! Estou de volta pra perto da senhora!

BENEDITA – Que bom menino!

CARLOS – Embora com o peito destruído por ver Stela daquele jeito!

BENEDITA – Vamos torcer para que ela se recupere, meu querido. Quando você foi embora, resolvi cuidar de Stela. Ela não sabe que sou sua mãe. E menti sobre Oswaldo.

CARLOS – Sim mamãe!

BENEDITA – Oswaldo não está preso, Oswaldo está morto. Só usei o nome dele e o medo que Stela tem dele, para evitar que ela saísse pelas ruas. Fiz isso para protegê-la, meu querido!

CARLOS – Mamãe! Obrigado! Obrigado por cuidar de Stela! Mas... Mas... E Carlinhos? Como foi a história do meu filho?

BENEDITA – Carlinhos não interessa. Essa história não interessa!

CARLOS – Claro que interessa, mamãe! É meu filho! Seu neto. Filho do mais puro e verdadeiro amor. Meu filho (choro).

BENEDITA – Carlinhos viveu até os seis anos. Stela o manteve em cativeiro. Mantinha relações sexuais com o garoto.

CARLOS – O QUE?

BENEDITA – Por isso o nome. Por isso a loucura!

CARLOS – Que horror!

BENEDITA – Ela via você, Carlos. O menino foi um espelho que Stela teve de você!

CARLOS – Ela é realmente um monstro. Transformou-se no pior dos monstros! Não é mais aquela bela jovem que conheci! Meu Deus! O que eu fiz?

BENEDITA – Ouvia os gritos do menino na madrugada.

CARLOS – Tudo culpa minha! Culpa minha, mamãe!

BENEDITA – Não, querido. Você não fez nada!

CARLOS – Eu não podia ter deixado Stela! Assim, eu saberia que ela estava grávida e cuidaria do meu filho! Mas eu não tinha escolha! Se eu não fosse embora, os comparsas de Oswaldo iriam matar a senhora! Eu não poderia perder a senhora.

BENEDITA – A vida é assim, filho. Agora você está aqui! Ela foi até os limites da loucura com essa paixão. Fez amor com o filho, abusou sexualmente dele... Pra ela, era tudo viver ao seu lado.

CARLOS – O monstro aqui sou eu! Eu causei desgraça pra tanta gente! Tanta mentira, tanta loucura!

BENEDITA – Oswaldo não faria nada comigo, meu querido. Porque um filho não mata a própria mãe.

CARLOS – O que a senhora disse, mamãe?

BENEDITA – Nada, querido. Nada! Acalme-se!

CARLOS – Disse sim! Deixou a entender que Oswaldo... Não... Não é possível!

BENEDITA – Eu disse que Oswaldo jamais faria alguma coisa comigo. Só isso!

CARLOS – A senhora disse que ele não faria nada com a senhora porque um filho não mataria a própria mãe. Oswaldo é meu irmão, mamãe?

BENEDITA – Sim. E sofri muito o vendo morrer aos poucos nas mãos de Stella, que o encontrou, viu traços seus no rosto dele... Depois viu traços seus no próprio filho. Ela só viveu para reencontrá-lo. Em todos os rostos!

CARLOS – Eu não posso mais aguentar!

BENEDITA – Cuidei de Stella porque vi a história se repetir. O mesmo que aconteceu comigo quando te deixei na casa de minha velha e boa amiga, Dolores. Eu, uma mulher abandonada e com um filho no ventre. E as mentiras para sustentar as vidas de seus protagonistas. Pobre Oswaldo! Pobre Carlos! Agora sinto um vazio. E sinto a velhice me tirar os suspiros finais.

CARLOS – Não, mamãe! A senhora ainda tem muito tempo de vida! É minha linda senhorinha! E tenho certeza que se fez tudo isso até hoje, foi para proteger seus filhos!

BENEDITA – Não sou mais aquela menina. Não tenho mais saúde e tempo para consertar meus erros...

CARLOS – Agora me resta ter pena de Oswaldo e aceitá-lo como meu amado falecido irmão!

BENEDITA – ...erros que cometi por amor!

CARLOS – O amor perdoa!

(Chuva rala pela janela, barulho do trem passando. Neblina.)






FIM